Está em curso uma petição sobre os atestados para carta de condução cujo texto se reproduz a seguir:
Exmo. Senhor
Bastonário da Ordem dos Médicos
Dr. Miguel Guimarães,
Remetemos-lhe o presente documento que pretende dar suporte a algumas preocupações com que os médicos de família (MF) abaixo-assinados se têm confrontado, agravadas pela implementação de um módulo informático para a realização de avaliação médica e emissão de atestados de condução.
É nossa convicção que os pontos que se seguem identificam problemas que contribuem para perturbar a qualidade do exercício da Medicina nos contextos a que se referem, e que afetam uma importante parte dos MF.
À sua consideração:
Segundo a legislação em vigor, a emissão de atestados médicos para habilitação de condução de veículos automóveis pode ser feita por qualquer médico no exercício da sua profissão.
A implementação do disposto no Decreto-Lei 40/2016 obrigará a que a emissão destes atestados se faça por via eletrónica (obrigação adiada para 1 de Abril de 2017). Mantendo-se compreensível e desejável o conjunto de itens a avaliar para determinar a aptidão para a condução de forma rigorosa, descritos na lei em vigor, é errado e não faz sentido realizar esta avaliação nos centros de saúde portugueses pelas razões que em seguida explicitamos.
1) COMPETÊNCIA E MEIOS TÉCNICOS
Esta atividade pericial não é uma competência específica da Medicina Geral e Familiar (MGF).
Os centros de saúde portugueses não estão vocacionados para fazer esta avaliação de acordo com o estabelecido na legislação atual e com as diretivas europeias, nomeadamente o exame da audição e da visão.
2) PARECERES
A multiplicidade de pareceres legalmente impostos é irrealizável no âmbito do SNS, pelo que apenas uma avaliação pericial multidisciplinar especificamente organizada com esta finalidade poderá cobrir de forma eficiente as diferentes áreas clínicas.
3) RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE E CONFLITO DE INTERESSES
É característica primordial da MGF a prestação de cuidados centrados na pessoa, cuidados estes altamente dependentes da relação médico-paciente (que pode ser terapêutica por si só). A avaliação da aptidão para a condução dos pacientes mais vulneráveis (os mais doentes e os mais idosos) pode perturbar esta relação.
De acordo com a definição europeia de MGF, os MF são médicos pessoais, responsáveis pela prestação de cuidados abrangentes e continuados a todos os indivíduos que procuram cuidados médicos. Embora com responsabilidade perante a comunidade em que se inserem, o papel dos MF é sobretudo de advocacia pelo doente e de respeito pela respetiva autonomia. O MF compromete-se com a pessoa e não com um conjunto de conhecimentos, grupo de doenças, ou técnica especial.
O código deontológico da Ordem dos Médicos proíbe expressamente que o médico assistente de um paciente atue como médico perito na avaliação desse mesmo paciente, ainda que possa transmitir a informação clínica de que disponha, para esse fim, quando solicitada e autorizada pelo mesmo.
4) TEMPO
O tempo de realização necessário a este tipo de peritagem é absolutamente incompatível com a organização da atividade assistencial das unidades de cuidados de saúde primários do país. A sua implementação trará prejuízos diretos e inaceitáveis à prestação de cuidados aos cidadãos.
- Perante os aspetos acima descritos, que poderão ser detalhados, os MF abaixo-assinados sugerem as seguintes medidas, no sentido de obviar constrangimentos e permitir uma prática mais correta e consentânea com cuidados médicos de qualidade:
- A suspensão do processo de desmaterialização do atestado para carta de condução, sob pena de bloquear a atividade dos MF ou impedir a sua realização no âmbito do serviço público atual, e até que se desenvolvam alternativas.
- O desenvolvimento de alternativas com meios e profissionais dedicados a essas tarefas periciais específicas e em multidisciplinaridade, como decorre noutros países, por exemplo em Centros de Avaliação próprios para o efeito.
- A exclusão dessa tarefa acessória, de entre outras com uma elevada carga burocrática, dos centros de saúde, melhorando a disponibilidade para tarefas clínicas, respeitando as competências dos MF e relações terapêuticas tão importantes para uma Medicina de qualidade.