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Sindicato Independente dos Médicos

Expresso: Os melhores do ano

30 dezembro 2017
Expresso: Os melhores do ano
Expresso, Revista E, 30 dez 2017, Clara Ferreira Alves

Foi perto do Natal. Um choque frontal atirou-me para a unidade de cuidados intensivos do Hospital de São José. É um posto de observação único. Apesar de traumatizada e com a cara feita num bolo, estava consciente. Durante a primeira noite não consegui dormir com as dores, apesar dos analgésicos. Pude ouvir e ver mais ou menos, da minha posição, o que ia acontecendo. Mais do que ver, ia ouvindo a tragicomédia dos serviços intensivos de um grande hospital. Onde fui tão bem tratada e medicada, assistida e acompanhada, que passados uns dias estava fora de perigo e sem sequelas maiores exceto as dores e o trauma. Entrei no INEM e saí pelo meu pé, com metade da cara reduzida a um hematoma.

A noite foi épica. Ao lado direito, uma doente chinesa estava em risco de falência orgânica. Excesso de ervas chinesas, pelos vistos, tinham levado a fígado a quase desistir, acompanhado pelos rins. Os médicos parlamentavam. Podia morrer e não falava português nem inglês. Imagine-se a dificuldade de tratar sem a colaboração da doente. Vinte e quatro horas depois, a doente estava fora de perigo e pronta a comer. Um dos médicos seniores pediu dieta chinesa da cantina. Quando ele saiu, os outros desataram aos berros, dieta chinesa? Onde quer ele que arranjemos dieta chinesa? Come portuguesa. De vez em quando, médicos e enfermeiras faziam uma inspeção à sala, a ver se sobrava cama vaga. No corredor, casos graves aguardavam. Perguntaram-me várias vezes se podia ir para casa, respondi que nem pensar, não corriam comigo dali. Sentia-me mal. Tudo isto era feito sem animosidade, com humor, com compaixão. Ninguém fazia ideia de quem eu era, com a cara amassada. Acabaram por correr com um velhote que não estava muito mal. Uma da manhã. Telefonaram à mulher para o vir buscar e ela disse que, àquela hora, nem pensar. Perguntaram ao doente se tinha ali a roupa, metiam-no num táxi para casa. A roupa tinha-a a mulher, nada a fazer, mas o doente queria ir-se embora, estava morto por sair dali vivo. Auxiliares e enfermeiras foram arranjar umas vestes de hospital, daquele tecido poroso e verde, e embrulharam-no bem de modo a não apanhar frio. Parecia uma múmia e estava protegido e quente. Pagando o táxi do bolso deles, enfiaram-no no carro e lá foi em direção à outra banda. O seu marido vai a caminho. Liberta a cama, entrou um necessitado. Nenhum sentimentalismo ou pieguice pode presidir a uma unidade destas.

A todo o tempo entram na Urgência pessoas a morrer que depois de tratadas com eficácia e método passam para aquela sala. Os cirurgiões de trauma são dos melhores do mundo, e todos os médicos e máquinas funcionam a cem por cento para salvar vidas a um ritmo alucinante, tal e qual como nas séries americanas de médicos e hospitais. Ou num hospital de guerra. A hotelaria é péssima e tudo o resto é de excelência. O Hospital de São José é uma operação de cinco estrelas para salvar vidas. Na cama do lado esquerdo, um homem morreu durante a noite. Acho que a cama foi ocupada e desocupada duas vezes, é provável que mais alguém tivesse marchado para o outro lado. Saía um e entrava outro. Um desses ocupantes tentou arrancar os drips e tornou-se agressivo. A brigada neutralizou-o, falando calmamente e convencendo-o. Neste caos organizado, cheio de jovens médicos, todos tinham de se sentar a um computador e bater relatórios, a burocracia do SNS. Não havia descanso, qualquer intervalo era passado a escrever. Era sobre isto que as batas conversavam, do excesso de burocracia e de a Urgência estar sobrecarregada e eles mais ainda. Sem imaginarem que os ouvia, no meu torpor noturno, contavam a dificuldade de manter a operacionalidade com tanta falta de meios e camas. O corredor ia enchendo. Na cirurgia e neurocirurgia, na imagiologia, não havia mãos a medir. Somos um país de acidentes rodoviários. Estávamos em plena austeridade e a unidade rebentava pelas costuras.

Quando amanheceu, a chinesa tinha sido salva e estava pronta a ingerir mais venenos herbáceos. Com infinita paciência, o médico tentou arranjar um intérprete para explicar o seu estado e impedi-la de se suicidar. Era preciso convocar familiares, usar a linguagem gestual. A chinesa balbuciava umas palavras numa língua a imitar português. Um dos médicos dizia que não podiam libertá-la sem lhe explicar o perigo. A preocupação dominante é salvar vidas e para salvar vidas tem de se ser um pouco médico e um pouco palhaço. Sem humor, um hospital seria um manicómio. Além de salvar vidas, é preciso dar banho, dar de comer, virar os doentes, administrar os medicamentos, vigiar os soros e drips, manter sobre a linha de montagem e reparação da vida uma vigilância de falcão. Assim que melhorei, fui despachada, como os outros. Levanta-te e anda, disse Cristo. Nunca ouvi uma má palavra, uma impaciência, uma atitude menos decente e humana daquela gente para com os doentes. Pelo contrário, o carinho era constante e a rispidez persuasiva.

Médicos, enfermeiros, auxiliares. Paramédicos. Bombeiros. Ganham pouco, trabalham muito, não se queixam. Têm cabeça e coração. São, como tantos outros que salvam vidas, os melhores de nós. Não constam de nenhuma lista e são os meus heróis.

Artigo em Expresso.

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