Artigo de opinião do Bastonário da Ordem dos Médicos no Jornal Expresso de 15 de setembro de 2018:
Na entrevista que deu ao jornal Expresso de 11 de agosto, o
Primeiro-Ministro (PM) António Costa afirmou, a propósito do estado da
Saúde em Portugal, que "já todos nós temos idade suficiente e
experiência acumulada para sabermos que o sector da saúde é um sector
onde com muita facilidade se generaliza e se torna como paradigma
situações pontuais. Se alguém espera que o Prof. Adalberto Campos
Fernandes deixe de ser Ministro da Saúde para que esses problemas se
resolvam por arte mágica, podem tirar o cavalinho da chuva que ele não
deixará de ser ministro”.
O PM, ao reafirmar
que no sector da saúde os problemas são situações pontuais, ignora o
desespero e a dedicação da imensa maioria dos médicos e, em especial,
daqueles com funções de direção, que tiveram a coragem de publicamente,
ao se demitirem, darem um grito de alerta pela defesa dos doentes e da
qualidade da medicina. Já todos esperamos que o ministro da Saúde negue
de forma reiterada a evidência da realidade. Mas do PM esperávamos mais. Esperávamos e esperamos que seja a reserva do Governo, que tenha bom
senso e respeite as pessoas, o património mais importante do país.
Provavelmente, não estará bem informado sobre o que está a acontecer na Saúde no
Algarve, Alentejo, Setúbal, Lisboa, Santarém, Leiria, Castelo Branco,
Coimbra, Guarda, Viseu, Aveiro, Porto, Braga, Vila Real, Viana do
Castelo, Bragança, Açores e Madeira. Não saberá que mais de 800.000
portugueses não têm médico de família atribuído. Que muitos hospitais
estão sob uma pressão de tal forma brutal que ultrapassa o limite do
aceitável, "à beira de um ataque de nervos”, como nos foi revelado pelo
relatório da Primavera 2018 do Observatório Português dos Sistemas de
Saúde. Que os cuidados paliativos continuam a não chegar à imensa
maioria dos portugueses. Que nos serviços de urgência perduram condições deploráveis. Que a falta crítica de capital humano, de equipamentos
adequados, de dispositivos e materiais clínicos, de infraestruturas que
dignifiquem os doentes e os profissionais de saúde, é desesperante.
Sabe, Senhor PM, que o SNS já não tem capacidade de resposta para todos os
portugueses?! Que o seu património genético já não é o que era e que não foi por acaso que o Dr. António Arnaut e o Dr. João Semedo deram como
título ao seu último livro "Salvar o SNS”. Que estão a aumentar de forma assustadora as desigualdades sociais em saúde. Que o acesso aos
cuidados de saúde, em tempo clinicamente aceitável, está cada vez mais
dependente do código postal e não só. Que as regiões mais periféricas e
mais desfavorecidas estão cada vez mais carentes. Que a perda de jovens
altamente diferenciados continua a aumentar. Que as agressões, a
síndrome de burnout, o desalento, a desmotivação, o desrespeito, a idade avançada e as desistências diárias do SNS ou abandono da profissão são
problemas reais que atingem os profissionais de saúde.
Senhor PM, ninguém gosta de ser enxovalhado e explorado. No mínimo exige-se
respeito e verdade. Não vamos desistir de lutar pela dignidade das
pessoas, dos doentes. Imagine que os médicos e os outros profissionais
de saúde cumpriam apenas as suas obrigações de acordo com a lei em
vigor. O SNS entrava de imediato em colapso.
Senhor PM, deixo-lhe um desafio: venha visitar connosco algumas unidades de
saúde, ouça os profissionais, mostre respeito por quem salva vidas todos os dias, por quem põe à frente dos seus interesses pessoais os
interesses dos doentes, por quem já viu pessoas a morrer nas suas mãos,
por quem luta no terreno por melhores condições de trabalho e dignidade
para os doentes, por quem deixa todos os dias a família à espera, por
quem não chega a conhecer como devia os seus filhos, por quem luta
verdadeiramente pela causa pública, por quem está disposto a lutar pela
saúde dos doentes até à exaustão, por quem quer um dia também ser feliz.
Este é um grito de alerta que está a ser dado por muitos profissionais de
saúde. Da parte dos médicos não os ouviu, nos últimos anos, a reclamar
melhores remunerações. Reclamam, sim, melhores condições de trabalho,
mais capital humano, mais equipamentos e materiais que lhes permitam
exercer uma medicina de qualidade, que lhes permitam tratar os doentes
de acordo com as melhores práticas. Este é o momento de encarar a saúde
não como mais um qualquer custo, mas como um investimento na saúde das
pessoas com impacto positivo na economia.
Não
ouviu os representantes dos médicos a pedir a demissão do ministro da
Saúde, mas a reclamar uma política de saúde diferente. Uma política de
saúde que valorize as pessoas, que coloque o cidadão no centro do
sistema, que envolva de forma ativa os profissionais de saúde, que
reforce a posição dominante do SNS, que considere a qualidade da
formação uma aposta vital para o desenvolvimento da Saúde, que seja
capaz de atrair e fixar os jovens.
De um livro
publicado em agosto de 2018 da autoria de Adam Kay ("Isto vai doer”), a
propósito do Serviço Nacional de Saúde britânico, gostaria de lhe deixar o seguinte excerto, intitulado "Carta Aberta ao Ministro da Saúde”:
"Roger Fisher era professor de Direito na Universidade de Harvard quando
sugeriu, em 1981, que os códigos nucleares americanos deveriam ser
implantados no coração de um voluntário. Se o Presidente quisesse
carregar no grande botão vermelho e matar centenas de milhares de
inocentes, teria primeiro de pegar numa faca de talhante e retirá-los do cofre do voluntário; tudo para que ele entendesse o verdadeiro
significado de matar em primeira mão e compreendesse as implicações das
suas ações. Porque o Presidente jamais carregaria no botão se tivesse de retirar os códigos do coração do voluntário.
De igual modo, o senhor e o seu sucessor e todos os seus sucessores
deveriam ter de fazer alguns turnos juntamente com médicos internos. Não estou a falar daquilo que o senhor já faz, em que o administrador lhe
mostra uma nova enfermaria a reluzir como uma estação espacial. Não:
aliviar um paciente com cancro; ver a amputação de uma perna de uma
vítima de acidente; fazer o parto de um bebé morto. Desafio qualquer ser humano, incluindo o senhor, a perceber o que este trabalho realmente
implica e a questionar a motivação de um único médico. Se o senhor
percebesse, estaria a aplaudi-los, teria orgulho neles e ficaria
eternamente grato por tudo o que eles fazem. A forma como trata os
médicos internos não funciona, comprovadamente. Recomendo-lhe vivamente
que peça uma segunda opinião.”
Este texto de
Adam Kay reflete de forma resumida o sentimento atual dos médicos
internos e especialistas. E daqueles que ocupam cargos de liderança ou
representam os médicos no SNS, no sector privado e social, nas
associações e sociedades científicas. Não despreze os valores
científicos e humanistas subjacentes ao exercício da medicina, nem os
princípios éticos que têm como base a solidariedade e a compaixão. Não
ignore os doentes nem as desigualdades sociais em saúde. Não "esconda na gaveta” a essência do Estado Social. Não continue a permitir que o SNS
se afunde cada vez mais. Peça com muita urgência uma segunda opinião. E
experimente "ouvir com outros olhos”.
Senhor
PM, o Estado não pode continuar refém do poder financeiro e económico,
tem de retomar de forma robusta as suas funções sociais e contribuir
para a paz e coesão social. Os doentes e os profissionais de saúde
precisam da sua intervenção. A manutenção da teimosia financeira
imponderada ultrapassando os limites humanamente toleráveis, a repressão que todos sentimos, pode resultar numa resposta de consequências
imprevisíveis, num grito de alerta coletivo. É uma questão de legítima
defesa dos doentes e dos próprios profissionais de saúde. Como escreveu o médico Miguel Torga, nós somos um povo pacífico de revoltados.
Acreditamos e temos esperança até ao fim.
A Ordem dos Médicos continua disponível para ajudar a construir uma saúde melhor e um SNS mais forte para todos os portugueses.