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Sindicato Independente dos Médicos

Maria Melo: Cenário idílico pós pandemia mundial: solidariedade e altruísmo

07 maio 2020
Maria Melo: Cenário idílico pós pandemia mundial: solidariedade e altruísmo
Observador, 6 maio 2020, Maria Melo

Sou médica, uma jovem com 11 anos de experiência clínica, carregados de horas mal dormidas, abrir de olhos obrigatório para manter a minha actividade assistencial e a estudar continuamente. E, igualmente, a fingir desde cedo uma cegueira e surdez a políticas associadas à saúde, que atingiam a minha classe profissional a todo o momento, de modo manter a minha sanidade mental ao longo da vida. Gosto de reflectir e numa fase de Coronavirus e pandemia mundial decretada, imagino o tríptico de Bosch, com a sua visão da humanidade carregada de luxúria, pecado, criações diabólicas mas ainda uma possível salvação da humildade! Uma possível! Pois bem, cá estamos nós na Era Covid-19: a possível salvação da humanidade: solidariedade e altruísmo! No entanto para sermos entendedores do presente deveremos sempre conhecer o passado, como ensina a história da humanidade.

Era pré Covid-19: muito pragmática e vivida, real a todos os segundos. Recordo-me bem de ouvir o mestre de obras lá de casa dizer-me "a Doutora parece russa, como aqueles médicos que deixaram panos dentro do doente operado", nada mais me restou que despedi-lo mas vi-me grega para arranjar outro mestre de obras, pois nos últimos anos têm um trabalho que mais parece digno de prémio Nobel; recebo um telefonema da mãe, após a sua caminhada vespertina que, com voz incrédula questiona: "filha a minha tensão arterial é alta? A filha da minha amiga disse que estava um pouco, e eu não sei porque tu não me explicas nada! ", respondo sempre o mesmo: " Sim mãe, tu só tens médicos em casa, mas os outros é que sabem! Um beijo” Após uns dias vim a saber que a tal filha era professora do 1º ciclo; e, quando estou num mesa de convívio e todos opinam sobre medicina, excepto os médicos presentes no convívio, sinto-me incrível a encarnar a personagem principal do filme de Woody Allen, sendo uma ouvinte a 100% e penso que o mundo continua cheio de pessoas estúpidas com certezas absolutas e pessoas inteligentes que estão carregados de dúvidas, mas a conversa continua como se não estivessem médicos presentes; e não escapam as agressões aos médicos, em número crescente que recentemente vieram a público, com comentários nas redes sociais: ah e tal, os médicos têm a mania. Noutro dia o médico foi tão brusco a atender-me que também merecia uma valente…e paguei 50€ por 10 minutos e quase nem me viu (se calhar quem fez este comentário foi aquela senhora que escreveu no seu iPhone última gama enquanto aguardava o arranjo do cabelo de 150€ ou aquele empresário de ascensão financeira de última horinha com os seu fio de ouro ao pescoço e ténis da LV de 600€).

E venha o presente, a Era Covid-19: Rugidos por todos os cantos do país: Viva aos médicos, afinal não são os jogadores de futebol os nossos heróis mas são os médicos, Viva! Aplausos por uns minutos aos médicos nas ruas de Portugal, união portugueses e força para os médicos!

(...)

E surgirá a Era pós Covid-19:

– Ah esses médicos, nós é que demos gratuitamente os EPI e agora querem aumento salarial e, nós que ficamos no desemprego, como é?

– Ah, mas o agora o meu médico não me atende o telemóvel nem responde a mensagens, preciso de saber se posso tomar antibiótico ou não! Pelo Facebook respondia logo, agora já tem lista de espera!

– Ah sim, sim mas a médica tem uma mania e é tão novinha que não percebe nada.

– Ah não vizinha, não se preocupe tome brufen e vá ao osteopata que fica logo boa.

– Como, uma consulta 80€? Nem pensar! Prefiro ficar na lista de espera 3 meses ou então vou às urgências, invento uns sintomas e sou logo vista (enquanto olha para as unhas alongadas de gel — sim aquelas que para manutenção anual 80€ não devem ser suficientes e aquelas que deveriam ser proibidas pois de higiene das mãos de nada têm! Mas afinal lavar as mãos, não era só na fase Covid-19?)

– Os médicos querem aumento salarial? Subsídio de risco? São doidos, Portugal não tem dinheiro, o desemprego aumentou, empresas faliram e queda, queda e queda!

Porque, meus caros, enquanto os médicos trabalhavam e são todos, todas as especialidades na sua devida competência para o vosso bem-estar, a vós só vos foi pedido para ficarem em casa. Uma mera quarentena que todos os médicos fizeram, vezes sem conta, ao longo de 6 a 12 anos de formação médica… perderam o campeonato do mundo de futebol, aquele concerto, aquela série, o primeiro sorriso do filho, o adeus do avô, as idas à discoteca e aquele Verão maravilhoso, porque estavam a estudar e estudar e estudar ainda mais. E são estes médicos que todos vós deveriam louvar agora e sempre, pois é a única profissão do mundo que vos consegue manter a vida em caso de doença e mais nenhuma profissão pode fazer o trabalho de um médico! Nunca se esqueçam disso! Em caso de pandemia, como agora, um médico só consegue substituir um médico e por isso, sim, são os vossos heróis, desde os colegas de saúde pública que andam a controlar a população, a todos os médicos de família que estão todos os dias a consultar-vos horas após horas, aos colegas dos cuidados de saúde secundários que fazem de tudo para vos manter vivos, fazem tudo para vos salvar ao mesmo tempo que estudam e se actualizam dia após dia!

Nesta Era actual, meus caros, já o nosso cineasta Manoel Oliveira disse outrora: "É mais importante a saúde do que o dinheiro. Uma pessoa com saúde pode dormir na soleira de uma porta. E um ricalhaço doente pode não ter posição na cama”.

Agora é a minha vez, como médica orgulhosa e defensora da minha classe rugir: eu consigo ser lixeira, padeira, operadora de caixa, servente, polícia, bombeira, e até política de cabaret. Mas nenhuma destas profissões nem outras mais conseguem ser o que eu sou agora e já, pronta a agir, ser médica.

Não batam mais palmas de quem não sabe quando acaba o primeiro acto na Ópera, não ofendam mais, reflictam nas palavras de Kennedy: Ask not what your country can do for you; ask what you can do for your country. Nós médicos há muito que reflectimos: estamos a cuidar de todos vós, prevenindo e curando a doença, pois é a nossa profissão que tanto honramos todos os dias mas que, muitas vezes, nos desmotiva por vossa causa! Vossa, meu povo português, citando a loucura de Erasmo de Roterdão: "não sei que mais me espanta nos mortais, se a ingratidão, se a sua indiferença”.

Artigo completo em Observador.

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