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Sindicato Independente dos Médicos

Vacinação COVID-19: o viés do risco zero e os jacarés empalhados

25 junho 2021
Vacinação COVID-19: o viés do risco zero e os jacarés empalhados
Estou sentado no meu posto no Centro de Vacinação COVID-19. À entrada, secretários clínicos registam os procedimentos iniciais de quem chega para ser vacinado. Enfermeiros em múltiplos espaços trabalham denodadamente a preparar vacinas, administrar vacinas e a registar todos estes procedimentos em computadores dedicados.  

Ocupo um espaço intitulado "Enfermaria”, misto de posto de socorros e armazém de material. Não tenho acesso a computador ou a qualquer outro instrumento de registo – este texto é escrito no meu portátil pessoal, usando a internet instável do pavilhão em que estamos instalados. Numa caixa próxima encontram-se dois kits de anafilaxia. Nunca foram usados nem, provavelmente, o serão alguma vez. Esperam-me cerca de dez horas de tédio, durante as quais tranquilizarei algumas pessoas mais ansiosas com a vacinação e tirarei uma ou outra dúvida sobre a elegibilidade das pessoas para serem vacinadas, gestos que poderiam ser realizados telefonicamente. Poderei ainda ser chamado a acudir a alguém que se sinta mal com o processo de vacinação, que isto de agulhas incomoda muita gente. É algo que os enfermeiros fazem no seu dia a dia sem precisar de médico ao lado. Aproveitarei estas horas para fazer outras coisas como, por exemplo, ler e escrever. 

Conhecem aquelas tentativas de proibir os baloiços nos jardins porque as crianças podem cair e magoar-se? Bem-vindos ao viés do risco zero: a busca de certezas absolutas como tentativa de eliminação do risco, que ocorre mesmo quando estratégias alternativas resultam numa maior redução global do risco. 

A decisão de colocar médicos em permanência física nos Centros de Vacinação COVID-19 é um exemplo cristalino de viés do risco zero em funcionamento. O objetivo será tratar precocemente eventuais reações anafiláticas à vacina, controlando assim acidentes graves imediatos. O que nos diz a evidência disponível? Segundo os Centers for Disease Control (últimos dados: 11 de junho de 2021), a taxa de reações anafiláticas às vacinas contra a Covid-19 situar-se-á entre as duas e as cinco por milhão de doses administradas. Repito: duas a cinco reações anafiláticas por milhão de doses de vacina administradas.  

Imaginemos, por momentos, que se verifica uma reação anafilática. Os procedimentos são elementares para qualquer profissional de saúde, médico ou enfermeiro, e estão definidos num protocolo claríssimo que termina no encaminhamento à urgência hospitalar. 

Enquanto o médico está no centro de vacinação não está no seu posto habitual de trabalho a fazer consulta de Medicina Geral e Familiar. Multiplique-se o número de centros de vacinação do país em funcionamento diário por 30 (número conservador de atos médicos de Medicina Geral e Familiar por dia) e temos o número de serviços, entre consultas, receitas, relatórios, telefonemas e outros gestos, com importância direta para a boa saúde dos portugueses, que não são realizados, em troca de o médico fazer... nada.  

Por que motivo está, então, um médico nos centros de vacinação? Esta medida só pode ser entendida pelo impacto psicológico, securizante, não só para a população, mas para os decisores.  Trata-se do clássico argumento de café, irracional, de que "o médico está lá porque pode acontecer qualquer coisa”. Ninguém parece reparar no quão insultuosa é esta situação, tanto para médicos como para enfermeiros: para os primeiros, pela desvalorização implícita da sua atividade diária (note-se que são médicos de família e não médicos hospitalares quem é escalado para acompanhar a vacinação); para os segundos, pelo atestado de incompetência que lhes é passado, como se os enfermeiros portugueses não estivessem perfeitamente capacitados para lidar com as situações passíveis de ocorrer nos centros de vacinação. 

Quando tudo chegar ao fim ficará registado para a história o extraordinário esforço dos enfermeiros portugueses para vacinar a população. Dos médicos de família, presentes nos centros de vacinação ou a acompanhar a vacinação em lares e domicílios, não ficará rasto: incógnitos e sem qualquer registo, terão cumprido o papel decorativo de jacarés empalhados para sossegar a turba e regressado ao seu canto, para voltarem a ser usados pelos decisores políticos quando e onde mais jeito der.  

Quanto às consequências para a saúde dos portugueses pelas centenas de milhar de consultas não efetuadas por conta deste exercício de aparências, caso um dia sejam apuradas, elas serão atribuídas aos suspeitos do costume: os médicos de família. 

Armando Brito de Sá

Médico de Família

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