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Sindicato Independente dos Médicos

Visão: Rutura momentânea de bom senso

20 abril 2018
Visão: Rutura momentânea de bom senso
Mafalda Anjos, Diretora, Visão, 20 abr 2018

Há três semanas, um doente cardíaco teve de levar folhas de casa para a consulta no Hospital de Santa Cruz para lhe poderem imprimir as guias de tratamento com as prescrições médicas para o seu problema de saúde – não havia papel neste hospital público de referência de Lisboa e o senhor não tinha acesso ao digital. Tão empenhados que estão todos na poupança de custos e na promoção da via "sustentável” das prescrições eletrónicas, que se esquecem de que há um Portugal que, imagine-se, não tem computador nem tablet, nem se ajeita a receber informação pelo telefone. Um Portugal que precisa mesmo de uma folhinha de papel com uma guia de tratamento, tão "old fashioned”. Resultado: não havia nada para passar documentos impressos aos doentes. Na semana passada, uma médica comprou do seu bolso uma resma e levou para a consulta. Tratou-se apenas uma rutura momentânea de stock, explicam. Antes fosse: acho que na Saúde estamos numa rutura momentânea de bom senso.

A Saúde está de rastos, e isso nota-se ao fim de minutos de conversa com qualquer profissional da área. Confesso que até há pouco tempo nutria uma secreta esperança de algum dos meus filhos querer ser médico quando fosse grande – ah, como é sedutora a profissão em que se desafiam as leis da Natureza e que tem como missão defender a vida. Hoje, pragmaticamente, nem por isso: vejo-a um bocadinho como o jornalismo: é linda linda, tão nobre, mas se calhar, filho, o melhor é deixares-te de idealismos e ires antes para engenheiro informático (não digo, mas penso).

Os médicos à minha volta estão de rastos. Pior, estão desesperançados. Há os que 
baixaram os braços e não querem saber, 
vão lá, fazem o que podem e não pensam mais nisso. Mas esses são os casos raros, 
os que conseguem pôr o coração ao largo. A maioria dos outros que eu conheço não é desses. Há os que dão tudo por tudo, noites, sábados, domingos e feriados (mesmo aqueles que já não deviam fazer noites mas estão lá sempre porque se não estiverem não há quem esteja). Há os que trabalham 36 horas seguidas porque a seguir aos bancos vão dar consultas para ganhar mais qualquer coisa. Há os que veem os doentes mal tratados e se indignam, os que lutam contra o sistema como Dons Quixotes contra moinhos de vento. Há os que andam a fazer coletas para comprar materiais básicos para as suas unidades. Estava a escrever esta crónica, e qual coincidência, recebo um email de uma médica amiga a pedir ajuda para divulgar uma corrida organizada para angariar uns tostões para a Liga dos Amigos do Hospital Dona Estefânia. Traz os teus bonecos à consulta, diz o cartaz, para convidar os meninos a participar com os pais. Vem daí brincar aos médicos. Onde é que já vimos isto?

No Hospital de São João, no Porto, há "condições miseráveis” na oncologia pediátrica, com crianças a receber tratamento de quimioterapia nos corredores. Há denúncias de internos a fazerem urgências sozinhos no Hospital de Santa Maria. Em Gaia, cirurgias oncológicas foram adiadas por falta de macas. No Hospital de Portimão, há anestesistas a reanimar bebés por falta de pediatras na urgência. Os casos de denúncias de rutura iminente são mais do que muitos: no Hospital de São Teotónio, em Viseu, por material obsoleto e pela falta de médicos; em Évora e Beja, nas unidades de pediatria e obstetrícia; no Hospital São José, em Lisboa, pela falta de profissionais. Vou parar por aqui, já chega de brincar aos médicos.

"Não há uma escolha alternativa entre a saúde e o défice”, disse o primeiro-ministro, António Costa, esta segunda-feira. Felizmente: tenho fé que a rutura momentânea esteja em vias de ser ultrapassada, o bom senso segue já dentro de momentos.

Artigo publicado na Visão.

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